[duas semanas depois...].RespostaRoma, Itália – 28 de fevereiro de 1984.
Caro Sr. Blackbury,
Gostei do fato de ter sido bastante sincero em sua carta. Foi o único dos presidiários que contou os fatos, ao invés de contar as partes que o defendem. Para um jovem na sua idade, que nunca havia passado por aquilo, talvez parecesse a melhor escolha, mas como podemos ver hoje, não foi bem assim. Gostaria muito de ouvir o restante da sua história, espero notícias.
Sinceramente,
Giulliam H. Minazzi.
_____________________________________________________________________________
Schielz Prison, Dresden, Alemanha – 3 de março de 1984.
Caro Giulliam,
Sem muita cerimônia, começarei a contar tudo o que aconteceu depois que fui preso. Passei dois meses
na cadeia, logo meus pais tomaram providências para que eu saísse de lá, e assim aconteceu. Confesso que é a representação do inferno na terra. O odor das celas dá náuseas, os outros presos parecem fósseis de tão asquerosos e envelhecidos com a sujeira. Péssimas memórias, mas continuemos. Logo que fui solto, retomei as aulas, embora as pessoas não se aproximassem mais de mim. Consegui passar o resto do ano até que ficou tudo tão insuportável que eu tranquei o curso, faltando apenas três meses para me formar, e saí do campus, dessa vez para sempre.
Em 1974, eu fui embora para a Europa. Meus pais estavam preocupados com a minha educação, mas sabiam que dinheiro nunca seria o problema, já que eu teria uma enorme herança garantida. Como se sabe, esses casos de mortes de universitários sempre fica muito falado. Daquela vez não foi diferente. Fotos minhas, de Marisa e de Ryan foram divulgadas por todo o mundo, por esses jornais sensacionalistas, e ao pôr os pés na Europa, eu sabia que seria rejeitado do mesmo jeito. Cheguei à
Inglaterra, exatamente em Londres. Para que eu conhecesse novas pessoas, meus pais conseguiram um convite de uma festa do Congresso. Eu iria com eles, mas o vôo deles foi cancelado e eu tive que encarar todas aquelas pessoas sozinho. Giulliam, o que você vai ler agora é a narração do maior erro da minha vida.
Ao chegar ao salão principal, já haviam grupos formados: algumas esposas de congressistas e
parlamentares conversavam entre si à direita do salão. Seus maridos, sentados às mesas, conversavam, fumavam e bebiam à vontade. Aquilo não era o meu mundo. Vi um velho senhor sentado sozinho à esquerda. Estava bem vestido, e, mesmo velho, tinha uma aparência conservada, com traços que ainda eram muito bonitos.
- Parece que também não encontrou seu grupo. – eu tentei um diálogo.
- Oh! Sim... – ele sorriu – Você é algum jovem político?
- Não... Não mesmo.
- Sou o Coronel Heathrow, muito prazer, meu jovem – ele disse, ajeitando o uniforme.
- Sou Eric Blackbury.
- Ah! – ele exclamou contente – O filho dos Blackbury, que rapaz você se tornou... Eu o conheci quando você tinha uns doze anos. Mas diga-me, onde estão seus pais? Deveriam estar aqui...
- O vôo deles foi cancelado, virão amanhã para o almoço com o Primeiro-Ministro.
- Sei... – ele olhou ao redor – Você está realmente sozinho?... Você não tem nenhuma companhia,
digamos... feminina?
- Não... – eu sorri – Engraçado você não tocar no assunto mesmo me conhecendo.
- Ora... Todos nós erramos na vida. Eu inclusive, uma vez deixei um companheiro meu morrer num
atentado... Pra mim é a mesma coisa que matar. – ele disse, sincero e confortante.
- Então... Vamos passar o resto da noite conversando ou tentaremos uma aproximação com alguém? – eu disse, irônico. Heathrow riu.
- Bem... Há alguns companheiros meus do Exército lá no jardim... Venha, vou apresentar você a
eles.
No meio do caminho, umas quatro pessoas se aproximaram para cumprimentar Heathrow e para me olharem desagradadas, com sorrisos amarelos: A Primeira-Dama americana, o Primeiro-Ministro inglês e sua esposa, um sargento da Marinha e sua filha. Oh, a filha dele. Lembro não ter parado de olhá-la enquanto o sargento fazia as saudações devidas ao Coronel. Era muito bonita, uma pena não ter sabido seu nome. Enfim, chegamos ao jardim, mais exatamente na fonte. Foi pior ainda. Os companheiros de Heathrow eram engraçadinhos. “Então, quando vai espremer alguém de novo?”, perguntavam após me cumprimentarem. Heathrow entendeu que deveria me retirar dali o mais cedo possível, e logo continuamos andando pelo jardim.
- Você é esperto, Blackbury... Vi as suas olhadas para a mocinha. – Heathrow disse, me olhando.
- Quem é ela? – perguntei, meio envergonhado.
- Victoria... Victoria Gardenick. Mas eu tomaria cuidado com ela... O pai a protege muito, e espera que ela case com um sujeitinho ucraniano da Força Aérea... Mathias Van Der Koch.
- Parece um nome bem chamativo – eu sugeri – Mas vai ver não é tão grande coisa...
- Não, não é mesmo... E a garota o odeia. Mas mesmo assim, não me aproximaria dela se fosse você.
- Sendo assim... Voltemos ao salão. Quero ter uma conversa com ela ainda essa noite. – eu disse,
empolgado. Heathrow me passou um rápido olhar reprovativo.
Nas duas horas seguintes tudo ficou igual. Eu já estava entediado e Heathrow também. Meus olhos estavam cansados de tanto perseguir a Srta. Gardenick pelo salão. Resolvi que seria melhor ir embora antes que as coisas piorassem.
- Sr. Blackbury... Vai desistir da festa? – disse Heathrow, com uma risada.
- Estou cansado. Quem sabe nos vejamos no almoço amanhã... Até logo, Coronel Heathrow. – eu me
despedi, atravessando o salão.
- Então é isso... Não me desaponte, quero isso pronto ainda hoje. – Victoria Gardenick sussurrava a
um desconhecido, na escada.
- Tudo vai dar certo, senhorita. – disse o homem, com um sotaque meio alemão. Ele desceu as escadas
apressadamente e saiu num carro.
- Oh! – exclamou Victoria, surpresa – Erm... Boa noite?
- Boa noite... Há algo errado? – eu perguntei, notando sua expressão.
- Não! – ela disse altamente – Está tudo ótimo... Estava tomando um pouco de ar, quando aquele
senhor me pediu informações sobre... Er... Sobre a Ponte Maddenborough.
- Hm... Sou Eric Blackbury... Nós nos vimos rapidamente lá dentro – disse, com um sorriso
orgulhoso.
- Oh, eu sei... Sou Victoria Gardenick, mas pode me chamar de Vicky.
- Então... Vai ficar só tomando ar ou prefere dar um passeio?
- Não posso... – ela disse, com um sorriso inocente, que de repente fechou-se numa cara enjoada –
Meu noivo está lá dentro.
- Van Der Koch?... Sei...
- Você o conhece?
- Só de nome... Soube pelo Coronel Heathrow que vocês estavam noivos... Mas não imaginei que ele estivesse aqui.
- Nem eu gostaria que ele estivesse... – disse ela, com um olhar perverso.
- Ah... Então foi tudo arranjado pela sua família? – eu disse, com cara de desentendido.
- Eu não tenho mãe desde criança. Meu pai me mantém protegida todo o tempo. Eu nem sequer conhecia Mathias quando meu pai me disse que havia arranjado um noivo... Eu odeio os dois... – disse ela, indignada.
- Não é culpa sua... – eu disse, colocando a mão em seu ombro.
- Você vai embora logo? – ela perguntou repentinamente.
- Está me expulsando? – eu perguntei, irônico.
- Oh, não! Quero só saber quando sai da cidade... Sei que você é americano.
- Daqui a uma semana... Mas não estou gostando muito daqui, talvez eu vá antes...
- Sim!... Eu poderia ir com você? – perguntou ela, excitada.
- Creio que nos conhecemos muito pouco...
- Oh, não seja mal... Todas as pessoas com quem convivo são velhas e super-protetoras... Você é minha única oportunidade de fugir de todo o mal que está por vir na minha vida... Sr. Blackbury... Eu imploro. Se não me ajudar, algo muito ruim vai acontecer.
Por um instante eu a olhei. Seus olhos estavam úmidos, e um pequeno fio de lágrima se estendeu por
sua pele branca. Ela continuou imóvel, me encarando com aqueles olhos azuis. Meu coração poderia levá-la até o fim do mundo, mas minha situação já não estava nada boa, seria muito risco a correr.
- Não. – eu disse, secamente, descendo o restante da escada.
Naquela noite eu estava furioso por dentro. Seria Victoria uma nova chance? Eu poderia ser feliz e
esquecer tudo o que houve com Marisa e Ryan e tentar uma nova vida ao lado dela? Não, não poderia. Se fugíssemos, logo seu pai e seu noivo viriam atrás dela, e quem sabe me condenariam por seqüestro ou algo parecido. Talvez tenha sido melhor assim, embora eu soubesse que Victoria jamais iria me encarar novamente. Recebi uma visita durante a noite. Não dormi antes das quatro da manhã, e, como conseqüência, acordei quase na hora do almoço com o Primeiro-Ministro.
[...]
- Oh! Os Blackbury! – exclamou o Primeiro-Ministro Sellbrough, com uma expressão alegre, levantando
da mesa – Estávamos esperando vocês... Mas onde está o garoto?
- Parece que ele esqueceu algo no carro... Já está vindo. - disse minha mãe.
- Então podemos começar? – Sellbrough perguntou, animado – Jeff! Traga o champanhe.
- Bom dia, senhores. – eu disse, me aproximando friamente.
- Oh! Estávamos à sua espera, meu caro... – Sellbrough exclamou.
- O que tem nesse champanhe... Está tão... – Sr. Gardenick fez uma pausa. Ele começou a tossir,
como se estivesse engasgado, mas sua expressão era horrível. Ele se debateu durante alguns segundos e depois, como que sufocado, levou as mãos ao pescoço até desmaiar sobre a mesa.
- Papai?! – acudiu Vicky, pasma.
- Rápido! Um médico! – exclamou Sr. Sellbrough.
Minutos depois da conversa no hall a polícia chegou ao local com a ambulância. O Detetive Roderick estava comandando a investigação, e logo pegou os depoimentos de Vicky e dos demais presentes na mesa de jantar na hora do crime. Eram oito pessoas, precisamente.
[...]
- A perícia concluiu envenenamento por cianureto de potássio. A dose foi fatal. Infelizmente não
achamos vestígios da substância em nenhum dos pertences das testemunhas. Na certa, foi suicídio. – disse o detetive Roderick.
- Claro... Um homem de carreira estável, filha noiva e que o ama provavelmente parece ter todos os
motivos para cometer suicídio. – disse Vicky, chorando.
- Srta. Gardenick, não temos provas no momento para concluir outra coisa... Em breve, com a
continuação das investigações, possamos concluir outra coisa. – disse o detetive.
- Que seja... – suspirou Vicky, saindo da sala.
[...]
- Me desculpe... – eu disse, entrando num dos cômodos da mansão.
- Não precisa se desculpar. Na verdade, foi meio estranho ter te pedido pra me ajudar a fugir, sendo que você mal me conhece... É que eu estava desesperada.
- Eu entendo. Recusei apenas porque era muito arriscado. Aliás, fugiria com você pra onde quisesse. –
eu disse. Vicky corou ligeiramente.
- Acho muito mais arriscado aquilo que nós realmente fizemos. – disse Vicky, séria.
- Foi suicídio, percebe? – eu disse, com um sorriso. Vicky me beijou – Vicky, você foi brilhante!
- Sim, a filhinha desconsolada foi bem convincente, mas ainda há uma parte do serviço, e temos
que fazê-la, senão não ficaremos juntos.
- Sim... Vamos ficar juntos custe o que custar.
- Custe o que custar... – ela repetiu.
[...]
Finalmente, o serviço completo. Mathias Van Der Koch foi “morto enquanto pilotava seu avião, que
sofreu uma pane”, pelo menos foi o que a polícia disse. Eu e Victoria éramos parceiros perfeitos. Ela, uma excelente atriz, conseguiu comover a todos no velório do pai e do noivo. Eu, rapaz com passagem pela polícia, matei ambos. Como? É simples... Na verdade é até surpreendente o fato de não terem
descoberto tudo. Na noite da festa no Congresso, Vicky confirmou a encomenda do cianureto na escada do palácio, enquanto eu ainda nem sequer havia falado com ela. Sim, o fato de ter recusado minha fuga com ela não foi nenhum encenação. Tudo foi resolvido naquela mesma noite. Ela visitou o quarto onde eu estava hospedado e, com seus truques, conseguiu me convencer do jeito mais patético a ajudá-la. “Você já fez isso antes, por uma mulher que amava”, ela sussurrou isso no meu ouvido enquanto apertava minhas mãos. Passamos a noite juntos, até que ela finalmente foi embora, quase às 4 da manhã. A hipótese de suicídio foi confirmada por terem achado um envelope vazio de cianureto no casaco do Sr. Gardenick, obviamente, esvaziado e implantado lá pela própria Vicky. Outro envelope
de cianureto foi utilizado na taça de Sr. Gardenick. A dose mortal do cianureto ficou lá o tempo todo, sem ninguém perceber e, ao ser servido o champanhe, tudo foi dissolvido e tomado. Mathias? Muito fácil... Vicky me deu acesso ao galpão onde o avião de Mathias estava guardado, e eu mesmo cortei alguns fios do sistema. Mathias morreu a quilômetros de nós. Duas semanas depois, Vicky e eu
estávamos arrumando nossas coisas para morarmos num pequeno sítio. Ela havia saído há dois dias para acertar os últimos detalhes, quando eu recebi uma carta assinada por ela e um pequeno pacote.
“Caro Sr. Blackbury,Espero que leia essa carta enquanto pega um trem para um lugar distante, pois a polícia deve estar indo atrás de você nesse momento. Eu, filha e viúva, me senti ameaçada, pois mataram meus parentes mais próximos, e logicamente, eu fiquei um pouco apavorada e me sentindo perseguida, já que eu ignorei totalmente a idéia de suicídio e erro mecânico diante deles. Sabotagem, eu diria. Alguém que me persegue. Alguém que eu conheci e que ficou inteiramente obcecado por mim. Alguém capaz de matar, alguém... Alguém com o seu perfil, Eric. Se mostrar essa carta à polícia, provará que eu também participei, mas então você estaria se entregando também. Você está perdido. Fuja enquanto pode. Quanto a mim? Estou procurando uma nova casa para viver com o meu velho amante: o Coronel Heathrow. Oh, por favor, deve estar descontrolado agora, mas acalme-se.
Junto com este envelope segue a quantia que, a meu ver, será suficiente para que você possa seguir sua vida após esse seu trabalho sujo. Agora você só estará seguro se sair de circulação. Agora você é apenas um fantasma, um foragido que jamais será encontrado. Siga seu caminho e continue a fazer o que você faz tão bem: matar.Da mulher que o ama, sua eterna parceira,Victoria Gardenick.”Não tenho mais o que falar, Giulliam. Eu a amava, realmente era obcecado por ela, e o fato de ela
ter me traído jamais a apagou da minha mente. Eu a amo até hoje e a amarei pra sempre. Ela foi minha perdição, mas ainda assim foi a melhor parte da minha vida. Devo o que sou agora à ela, mas se quer mesmo saber, nunca me arrependi de ter me tornado um assassino. Nunca matei inocentes. Cada um tem seus pecados, o meu, foi amá-la. Essas lembranças me aborrecem, Giulliam. Já chega por hoje. É isso, só isso. Vejo você por aí, companheiro.
Sinceramente,
Eric J. Blackbury.